Na penumbra de uma
sexta-feira piracicabana qualquer, num final de outono, frequentadores do
parque da Rua do Porto, tradicional ponto de encontro de jovens barulhentos que
por lá celebram suas igualdades, e situado próximo ao rio que corta a cidade,
afirmam ter visto um objeto voador não identificado sobrevoando o lago situado
no parque. Durante a fria madrugada, de névoa baixa e com a ausência da lua, o
óvni foi avistado numa altura inferior a dois metros da água.
Em
meio a uma grande confusão, causada por baderneiros que acompanhavam uma festa
de despedida de solteiro, e passavam pelo local, algumas testemunhas narram
suas assustadas histórias para incrédulos ouvintes e atrasados policiais.
Nos
dias seguintes, a imprensa da cidade não deu importância alguma ao fato, nem se
puseram a investigar a ocorrência devido a falta de provas e, principalmente,
em decorrência do estado etílico dos transeuntes que por lá circulam ao
anoitecer.
Dias depois,
moradores próximos e assíduos da prática de pescaria afirmam ter visto uma
mancha escura no lago e a água mais agitada do que o normal. Com o surgimento
de indícios de que havia alguma coisa diferente dentro do lago, a repercussão
do caso começa a tomar corpo, e os frequentadores noturnos começam a enxergar
silhuetas estranhas, durante as madrugadas, na beirada do lago.
Os jornais da
cidade continuaram ignorando o fato, porém as rádios começaram a fazer
brincadeiras sobre a presença de um suposto mostro na lagoa, ou o “mais novo
habitante a permear o imaginário das pessoas”, segundo um radialista mais
cético.
A frequência
da Rua do Porto cai para mais da metade e os bares da região passam a registrar
baixas no faturamento. Os pescadores somem do local, alegando não haver mais
peixes na lagoa, e o coaxar dos sapos não era mais ouvido por ninguém.
O caso ganha
fama nas cidades vizinhas e, durante o dia, curiosos aparecem no local para
ouvir histórias dos moradores das redondezas. Um programa de TV dá destaque para
o fato, coisa que até então não havia acontecido, e a cidade passa a ser
referência em casos de aparições extraterrenas, se tornando atração para
estudiosos e ufólogos. Cogita-se a vinda de grupos de pesquisadores na cidade
para analisar a veracidade e as circunstâncias do ocorrido.
Coisas
inusitadas passam a acontecer no local. Greves e protestos passam a ser
realizados nas proximidades da Rua do Porto, na tentativa de chamar a atenção
das autoridades. Um grupo de desabrigados, ligado a um movimento popular, monta
um acampamento nas imediações da lagoa e a mendicância aumenta no entorno da
região. O parque é abandonado pelos usuários e pelo poder público, o mato toma
conta do local. Sem conseguir projeção com o caso, o grupo de sem-terra
abandona a área.
Pesquisadores do curso de biologia
da USP - Universidade do Salto do Piracicaba - lançam a ideia de mergulhar um
homem-rã nas águas do lago, com a intenção de desfazer qualquer dúvida sobre a existência
de alguma coisa, que não fosse peixe, na lagoa do parque da Rua do Porto.
O
escafandrista, que deveria ser bastante corajoso e convicto, iria percorrer
toda a extensão do lago de maneira minuciosa, vasculhando de forma científica o
fundo daquelas escuras águas. O poder público, que até então não havia se
manifestado, se mostrou favorável e deu total apoio à empreitada dos biólogos.
Acreditando
na possibilidade de existência de algo vivo, na lagoa, com exceção dos peixes,
a Sociedade Protetora dos Animais repudiou qualquer ato que viesse a pôr em
risco a vida do pobre animal, já que o escafandrista iria mergulhar armado. Os
ufólogos também se postam em defesa do desconhecido, mas apoiando a empreitada,
desde que o incógnito fosse pego vivo e trazido à tona para comprovar sua
existência de seres extraterrestres.
Devido um
entrave burocrático quanto ao seguro, a expedição científica ficou impedida de
executar a manobra aquática, pois a seguradora não quis assumir a
responsabilidade por qualquer problema ou eventualidade que pudesse acontecer
com o mergulhador.
Em busca de
evidências, ousados fotógrafos e cinegrafistas desembarcam no parque com suas
objetivas e equipamentos de filmagem, na tentativa de flagrar qualquer
movimento suspeito nas águas do lago. Destemidos pescadores começam a chegar e também
se concentram no local, armando suas redes e molinetes para tentar fisgar a
coisa.
O confronto
entre caçadores de imagem e de cabeças a prêmio é inevitável. A polícia é
acionada no meio da madrugada para resolver o entrevero e, em meio à confusão,
pessoas afirmam ter visto algo emergindo da água. O caos é formado e os
notívagos começam a surgir de todos os lados. Insones chamando amigos pelos
celulares para ver a fera que finalmente apareceu no lago ‘durante uma batida
policial’.
O esquadrão
da polícia fica pequeno para o número de carros que começa a rodear o parque.
Cria-se uma verdadeira algazarra, com buzinas, lanternas piscando e celulares
de curiosos ávidos por uma imagem inédita disparando flashses a todo instante.
Iluminado pelos faróis dos carros, que circulavam por sua volta sem realmente
saber o motivo daquela agitação toda, o parque parecia estádio de futebol em
noite de final.
A partir daí,
instala-se uma neurose coletiva na cidade. Tudo é culpa do monstro do lago,
infidelidade conjugal, briga de casais e vizinhos, alguns com morte, filho de
pai estéril, acessos de loucura, desequilíbrios emocionais, bebedeiras, falta
de quórum nas reuniões legislativas, espancamentos e estupros.
A queda nas
vendas do comércio e o fraco desempenho da indústria também são atribuídos ao
bicho. O nível de desemprego aumenta significativamente e única coisa que
prospera na cidade é a mística sobre a existência de algo submerso e que não
fosse peixe nas águas do lago.
Como estava profundamente
imerso, um jornalista batizou o bicho de Corongo. Mesmo tendo um nome e,
conseqüentemente, passando a ser alguém, ninguém jamais havia avistado o
ex-pagão. A alcunha despertou a criatividade das pessoas e o cotidiano municipal
faz surgir novidades em relação ao desconhecido monstro, talvez impulsionado
pela monotonia da vida.
Um bar da
cidade lança uma bebida chamada Mé-corongo, o sucesso é imediato. Outro aproveita
a onda e inventa um lanche homônimo. Sucesso igual. Todos querem experimentar o
‘corongo quente’ e o ‘corongo frio’. Um restaurante cria um escondidinho, mas o recheio é mudado e tornou o prato irreconhecível.
Ambulantes e
camelôs passam a vender miniaturas de um monstro aquático, confeccionados por
hippies e artesãos, alegando ser aquela a réplica fiel do bicho que habitava as
profundezas da lagoa, mas que nunca havia sido visto.
Com o
aparecimento deste amuleto, o mito ganha um novo fôlego quando o assunto já
parecia estar esfriado. Assim, a réplica de uma imagem nunca vista se
transforma numa verdadeira febre. Todo adolescente tem uma no bolso, pendurada
no pescoço ou no pulso, as crianças levam os seus para a escola e as
professoras os tomam de suas mãos.
Um pastor
evangélico abordado o assunto durante o culto satanizando o consumo do maléfico
objeto e repudiado, veementemente, sua posse; já o bispo ordena todos os padres
a repudiarem a imagem na missa de domingo. A iniciativa saiu como um tiro pela
culatra, na segunda-feira a febre já era uma epidemia: todos tinham uma réplica
de Corongo.
A miniatura
era de resina, sua produção parecia não se esgotar e os negócios prosperaram,
logo surgiu Coronga e em seguida os coronguinhos. A materialização do bicho
criou uma neurose obsessiva compulsiva entre
os munícipes.
Aquele
comportamento patológico paralisou a cidade, a situação já não tinha mais controle
e se tornara insuportável. A pauta legislativa se debruçava sobre conjecturas absurdas
e propostas esdrúxulas para solucionar o problema. As autoridades se dividiram em
torno de um novo dilema: jogar veneno no lago ou esgotá-lo, idéias logo
descartadas.
Houve uma
tentativa para tentar convencer os veículos de comunicação a não noticiarem
mais nada sobre o assunto, mas a ideia também não foi bem aceita pelos
empresários do setor midiático. Corongo era um produto que se comercializava facilmente,
pois os inescrupulosos já havia se apoderado deste filão, que vendia mais do
que pão quente.
Um conhecido
contraventor da cidade, bastante popular por comercializar a mais antiga
mercadoria deste mundo, até tentou patentear o nome do bicho, foi assassinado
na porta de sua casa, de frente ao parque, às seis da manhã, quando saía para sua
caminhada matinal. O assassino jamais foi encontrado.
Com a chegada do calor
a água despencou. Choveu torrentemente naquele verão, com as chuvas provocando enchentes,
as enxurradas eram constantes, com seguidos temporais, e as pessoas já não
saiam de suas casas. A vida ficou cheirando a bolor e o fim parecia estar
próximo, um novo dilúvio avassalaria toda a vida existente.
Na última grande
enchente o lago, que era artificial, ainda não existia. Portanto, todos se surpreenderam
quando o lago sumiu ao ser incorporado pelo rio. Com a cheia, as águas se
prolongaram além do leite e ocuparam toda a extensão do parque. Do alto do
prédio da prefeitura, que ficava próximo, a vista era de uma grande área
inundada, onde se via apenas o rio alargado. Assim, por algum tempo, a lagoa
deixou de existir.
Quando as águas
lentamente começaram a baixar o lago ressurgiu, mas desta vez com seu conteúdo
renovado e mais cristalino do que nunca. Nitidamente, após a enchente, não
havia mais nada de estranho ali.
De repente, o
espetáculo criado em torno da mística de Corongo se desfez da mesma forma como
se criou: da noite para o dia. Cogitou-se pouco sobre sua possível migração
fluvial, ou porque não dizer pluvial, pois se foi com a chuva e os dias se tornaram
monótonos sem as notícias que o faziam vivo, fato suficiente para enterrar uma
existência.
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