segunda-feira, 4 de março de 2019

Uma história de Carnaval

Durante um baile de carnaval, já na madrugada de Cinzas, Arlequim e Colombina conversam no salão de um clube social da cidade. Ele:
_ Se não tomar um comprimido, amanhã vou acordar com um cavalo dando coices num sino dentro da minha cabeça.
_ Avisei para não misturar tanta coisa. Parecia que estava fazendo um coquetel no estômago. Fique aqui, volto já.
            Após o afastamento da Colombina, Arlequim se aproxima de uma Odalisca que estava perto.
_ Sozinha num baile tão animado?
_ Estes carnavais não me animam, não são mais os mesmos. Estas músicas.......
_ Ora, a animação está dentro de cada um. As pessoas estão aqui apenas para se divertirem e nada mais. Deveria fazer o mesmo.
_ Mas o carnaval mudou. Antropofagia geral. Continua sendo o festival da carne, só que restou apenas a carne humana nesta festa!
_ Mas o que veio fazer aqui? Carnaval é isso, ninguém é de ninguém.
_ Não vim para ser comida de ninguém! Gosto das marchinhas, das máscaras, das fantasias. Nem perfume estou sentindo, está cheirando éter puro!
_ Está no lugar errado, ou ainda não bebeu o suficiente para entrar no clima que diz estar faltando.
_ Quem disse que a animação estava dentro de cada pessoa? Não preciso de bebida ou drogas para me divertir no carnaval. Veja você, está encharcado de álcool e com um tremendo bafo. Digo que o carnaval mudou porque não há ninguém neste salão fantasiado, estão todos seminus.
_ Você é muito conservadora com relação à festa. Às coisas mudam, mesmo assim existem pessoas fantasiadas. Eu e minha esposa, por exemplo?
_ Eu e meu marido também, mas apenas os mais velhos mantêm essas tradições, que estão acabando. A maioria está aqui caçando, é só olhar e conferir. E olhe estas músicas...? Que coisa mais apelativa.... É como se todos estivessem se aquecendo para um ritual voluptuoso.
_ É um aquecimento e faz parte do clima. Este é o melhor lugar para as pessoas desabrocharem suas vergonhas. O tão reprimido desejo por fortes emoções pode ser aqui saciado pelos anjos e demônios que há em cada um de nós. É como se estivéssemos no purgatório, aqui podemos dançar com o diabo sem que ele, necessariamente, nos leve para sua casa no final do baile.
_ Só porque estamos no carnaval todos devem abster de suas condutas para viver essas emoções?
_ Uma vez ao ano temos a chance de despirmos de nossas condutas, penitenciados por nossa própria consciência, pois, afinal, é carnaval. E com a vantagem de voltarmos ilesos para casa.
_ E você acha que uma pessoa pode ir ao fundo da perversão e simplesmente voltar para sua vida, normalmente, sem mácula alguma?
_ Até acho que pode haver alguns remorsos ou arrependimentos, movidos por atitudes insanas, mas ninguém vem para cá obrigado. É a festa mais democrática do mundo, se não quiser se divertir vá para um retiro, se isole e não verá o que não quer.
_ Pois eu não vejo democracia nisto, as pessoas são iludidas por um clima festivo e acabam encontrando apenas a perversidade.
_ Não diga isso, deixe o dia raiar que tudo volta ao normal!
_ As coisas não devem ser vistas como se ontem não tivesse existido.
_ Hei, espere um pouco, com todos estes juízos e predicados, o que está fazendo aqui? Você também me disse que era casada. Onde está seu marido?
_ Ele passou a pouco, num trenzinho.
_ Mas, naquele trenzinho as moças estavam apenas de biquíni. Só havia um Pierrô vestido.
_ Sim, o meu marido.
_ Mas..., ele estava na maior farra!
_ Estamos num baile de carnaval, ou não?
_ Espera aí, mas quem me falava dos excessos dos carnavais modernos?
_ Estamos aqui para salvar almas perdidas, ou que estejam seguindo o mau caminho.
_ Do que está falando? Que negócio é esse?
­_ Eu e meu marido fazemos parte de uma seita. Temos um templo para salvarmos fiéis em desespero.
_ Mas o que estão fazendo aqui, num baile de carnaval?
_ Estamos arregimentando ovelhas para nosso rebanho.
_ Aqui?!
_ Onde mais poderia ser? Conhece um lugar mais profano do que um baile de carnaval? Até o final do baile, principalmente por esta ser a última noite, muitos sucumbirão em suas próprias dores quando sentirem a solidão se aproximar.
_ Como pode ter tanta certeza do que diz?
_ A solidão deprime todo ser humano e o álcool baixa a guarda das pessoas. Há muitas almas precisando de ajuda nesta vida e estamos aqui para mostrar um novo caminho para quem estiver disposto a conhecer. Quando você não sabe para onde está indo qualquer caminho serve. É para isto que viemos para cá.
_ Gostaria de conhecer esta sua igreja, se é que posso chamá-la desta maneira?
_ Sim, mas ainda é muito pequena. As reuniões acontecem num galpão abandonado, fizemos algumas melhorias e realizamos os cultos às terças.
_ De quem partiu esta iniciativa de se criar uma igreja para almas em desespero?
_ Não existem almas sossegadas. A tranqüilidade é sempre passageira e efêmera, as pessoas necessitam de curas rápidas para suas dores. Isto explica porque há tantas igrejas e muitos infelizes. Em nossa seita buscamos a paz para sua alma num curto prazo.
_ Mas, quando a solução é muito rápida ela também não é menos eficaz?
_ É por isso que as pessoas voltam, pois as dores nunca são as mesmas. Cada dia há um problema diferente e nunca repetimos o mesmo diagnóstico.
_ Gostei do método, devo aparecer por lá qualquer hora e levarei minha esposa. Por falar nisso, ela está demorando muito?
_ Meu marido também sumiu.
_ Onde mesmo disse que ficava o templo de vocês?
_ Conhece a rua Caminho da Servidão?....
Enquanto isso..., na parte externa do salão, sobre a grama do jardim, Pierrô e Colombina se amavam sob a garoa fina, daquela fresca madrugada de verão. Embalados pela banda que naquela altura da noite já tocava Bandeira Branca.

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