Reportagem foi publicada pela Folha de S. Paulo no dia 6/10/2012
Neste
mês de outubro se comemora dez anos de uma descoberta nem tão revolucionária, porém,
escandalosa. A informação foi encoberta por muitos anos devido a uma legislação
que permitia substituir até 50% da cevada, que deveria ser utilizada na
composição da cerveja, por ‘cereais não maltados’. Na grande maioria das vezes,
essa troca era feita por milho. Mas tudo não passava de uma suspeita. Além
disso, pairava a dúvida sobre a lisura dos fabricantes.
A
prova comprovatória só chegou depois de um estudo produzido em Piracicaba/SP,
cidade que virou palco de uma infeliz coincidência, visto que o município é
conhecido pelas melhores pamonhas do Brasil. O quitute, por sua vez, é feito
com o “mais puro creme do milho verde”.
Cevada é a principal matéria prima da cerveja - foto de Paulo Ricardo Santos
Pois
bem, a pesquisa foi realizada por cientistas do laboratório de Ecologia
Isotópica, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), localizado em um
dos campi da Universidade de São Paulo (USP), que abriga esse renomado
instituto especializado de tecnologia avançada.
Mas
essa história começou um pouco antes, na vizinha cidade de Campinas e em uma
instituição tão renomada quanto o Cena, quando o físico Rogério Cezar de
Cerqueira Leite, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
publicou um artigo no jornal Folha de S. Paulo denunciando a ‘malandragem’. O
texto foi intitulado “A cerveja: bebendo gato por lebre”.
Com
isso, o professor levantou a hipótese de que a bebida nacional teria uma
concentração de componentes não maltados, o caso é o milho, muito mais alta do
que deveria para ser chamada de cerveja. Isso porque de acordo com a norma
autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta
exclusivamente por apenas três elementos: cevada, lúpulo e água - sendo o
fermento um agente interveniente.
O
termo malte designa a cevada germinada, mas ele pode substituir a cevada total
ou parcialmente. A malandragem começava quando os rótulos das mais diversas
marcas de cerveja utilizavam a expressão ‘cereais maltados’ ou, simplesmente,
‘malte’, dissimulando a natureza do ingrediente principal na composição da
bebida. Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria
cervejeira podia optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.
Professor Luiz Antonio Martinelli coordenou o estudo realizado no Cena/USP
A
história intrigou o professor Luiz Antonio Martinelli, que se embrenhou em um
hercúleo estudo para desvendar o que realmente havia a mais na composição
química da bebida. O extenso trabalho de pesquisa analisou 77 marcas do
produto, incluindo 49 cervejas produzidas no Brasil e 28 importadas, fabricadas
na Europa, nas Américas do Sul e do Norte, além da China. Na época, o estudo
foi publicado com exclusividade pela revista científica ‘Journal of Food
Composition and Analysis’ e assinado pela bióloga Sílvia Mardegan, aluna de
mestrado orientada por Martinelli.
“A
imprensa mudou o viés do release publicado pela assessoria de imprensa, porém a
surpresa foi positiva, pois foi após essa ampla divulgação que o consumidor
descobriu que realmente havia algo de diferente nas cervejas. A partir daí
houve uma conscientização que até então não existia, as pessoas começaram a
discutir cerveja e a pesquisa contribuiu para incentivar o mercado das
artesanais”, lembrou o professor.
Infográfico da Folha de S. Paulo ilustrou as cervejas pesquisadas
O
resultado de uma das análises químicas mais completas já feitas com marcas de
cerveja do Brasil e do exterior não chegou a surpreender, pois apenas confirmou
o que já era sabido e que estudos menores já indicavam. Todavia, a pesquisa
comprovou que as grandes marcas nacionais tinham elevadas quantidades de milho
em sua composição, embora a matéria-prima tradicional da bebida fosse a cevada.
“A
publicação do estudo provocou uma revolução no mercado, mas que já estava
pronto para isso. A pesquisa com o isótopo funcionou, na verdade, como um
catalisador que os marqueteiros das cervejarias souberam aproveitar”, afirmou
Martinelli. “Isso é fato, tanto que a indústria cervejeira percebeu rapidamente
e explorou isso, pois a partir dali estava surgindo um nicho de mercado, até
então, pouco explorado”, completou.
Embora contestado pela indústria, que alegou dizendo que o produto brasileiro era
um dos melhores do mundo, o professor justificou que o trabalho não avaliava a
qualidade da bebida, ou se a cerveja era pior por conter milho, mas apenas a
quantidade de substâncias existentes em sua composição química.
“Graças
a esse estudo, hoje temos um consumidor muito mais consciente. Infelizmente não
há como quantificar, e nem temos como mensurar esses números, porém, a
percepção em relação ao que está consumindo é nítida e, mesmo que opte por
comprar cerveja com milho, agora o consumidor faz isso de forma consciente”,
sentenciou.
Embora
a indústria tenha negado o resultado da pesquisa, fato é que logo depois o
termo ‘puro malte’ passou a ocupar lugar de destaque nas prateleiras dos
supermercados e as cervejas artesanais começaram a ganhar mais espaço no
mercado cervejeiro.
“Posso
afirmar tranquilamente que a pesquisa com os isótopos acabou funcionando como
um selo de qualidade da cerveja. Os rótulos tiveram que mudar e ‘confessar’ as
substâncias que existiam no produto”, disse Martinelli.
Xandão não sabia que sua cerveja serviu de referência para o estudo - foto de Paulo Ricardo Santos
Cerveja de referênciaUsada
como referência na pesquisa que desvendou a utilização de milho na cerveja, a
Cevada Pura também foi uma das marcas produzidas no Brasil e avaliadas pelos
cientistas durante os estudos.
“Naquele
período não havia tanta disponibilidade de marcas de cervejas artesanais nas
gôndolas dos mercados e a proximidade de acesso ao produto da cervejaria
piracicabana foi providencial para usá-la como referência, estabelecendo o
padrão para se fazer as comparações”, lembrou o professor Martinelli.
Na
época da publicação, a pesquisa constatou ainda que das 49 marcas brasileiras,
além da própria Cevada Pura, apenas Baden Baden, Colorado, Eisenbahn, Heineken,
Paulistânia, Schmitt e Therezópolis eram cervejas com alto teor de cevada.
“Me
lembro bem quando a pesquisa foi divulgada e aquilo caiu como uma bomba no
mercado, mas não sabia que a Cevada Pura tinha sido a cerveja padrão da
pesquisa. Ao recordar de tudo o que aconteceu me dá mais orgulho de saber que
já estávamos no caminho certo”, afirmou Alexandre Augusto Peres Moraes, Xandão,
criador e proprietário da marca que acaba de completar 21 anos.
Coincidências
à parte, três estilos da cervejaria Colorado utilizadas na pesquisa, Appia,
Cauim e Demoiselle, tinham sua produção terceirizada na fábrica da Cevada Pura,
em Piracicaba.
“Estamos
no mercado há mais de 20 anos e até a primeira metade desse período a produção
de cervejas no Brasil ainda era muito restrita às grandes marcas. Pouco se
falava das artesanais e as cervejas mais conhecidas eram as tradicionais de
processos industriais. Porém, de lá pra cá, houve um boom no surgimento de
nanocervejarias e microcervejarias. A reportagem da Folha de São Paulo, em
2012, foi um divisor de águas no mercado”, lembra Xandão da Cevada, como gosta
de ser chamado.
A
Cevada Pura nasceu com capacidade produtiva de oito mil litros/mês e, já na
época da publicação do estudo, produzia 40 mil litros/mês. Atualmente, a
produção da cervejaria piracicabana gira em torno de 150 mil litros/mês.
Gráfico do Mapa aponta o crescimento das cervejarias no Brasil nos últimos 10 anos
Cervejarias no Brasil
aumentaram 10 vezes em uma década
Divulgado
em agosto pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o
Anuário da Cerveja apontou um crescimento de 12% no número de cervejarias
registradas no Brasil no ano passado. O levantamento diz respeito a 2021,
quando o país registrou 1.549 cervejarias. Em 2020 havia 1.383.
O
levantamento é realizado desde o ano 2000, quando o país possuía apenas 40
registros. Em 2009, esses números atingiram os três dígitos e, em 2012, ano de
divulgação do estudo que desvendou a utilização de milho na cerveja, o
levantamento do Mapa apontava 157 cervejarias registradas no país. Ou seja, em
uma década, o número de cervejarias no Brasil multiplicou-se por 10.
“Apesar de ser um setor que vem
crescendo há duas décadas, é fato que o segmento de cerveja, principalmente
artesanal, no Brasil, começou a crescer significativamente a partir de 2010,
quando o consumidor passou a enxergar nesse produto uma forma de apreciar essa
bebida com mais qualidade do que as cervejas convencionais”, avaliou Xandão.
Os números
do Mapa ilustram bem o crescimento exponencial registrado na época, tanto que em
2011 o aumento foi de 13,2% e, a partir de então, em relação ao ano anterior, o
ano de 2012 apresentou crescimento de 21,7% e o setor continua em franca
expansão por anos seguidos: em 2013 = 24,2%; 2014 = 31,8%; 2015 = 29,2%; 2016
incríveis 48,5%.
Nos três anos seguintes, o setor de cervejas apontou
crescimento superior a 30%, cravando 37,7% (2017), 30,9% (2018) e 36% (2019). A
partir daí, apesar de permanecer em dois dígitos, este percentual mostrou desaceleração
visto que de 2019 para 2020 o número de estabelecimentos aumentou em 14,4% e de
2020 para 2021 cresceu 12,0%, mas isso se deve, em parte, a pandemia de Covid
19.
Paulo Bettiol (Feijão) diz que o conceito de artesanal é usado indevidamente
Entrando no mercado
puro malte Aproveitando
o momento de crescimento desse mercado, o Centro Cervejeiro Brew Center, que
produz desde o ano 2000, diversificou a linha de produtos com o início da
produção de cervejas artesanais.
“Nosso
processo de produção cervejeira possui 22 anos e, a partir de 2017, decidimos
entrar de cabeça no mercado de puro malte. Afinal quanto mais oferta melhor
para o consumidor”, afirmou Nirlei Baungartner, que produz para diversas
cervejarias, além de fabricar suas próprias marcas como a Villa Alemã, St.
Patrick's Beer e Audax, essa última exclusiva para sócios assinantes do Clube
Cervejeiro Brasil.
Localizada
na cidade de Ipeúna, interior de São Paulo, a Brew Center produzia 80 mil
litros há dez anos e, atualmente, a produção atinge a casa dos 300 mil
litros/mês, o equivalente a quase 400% de aumento. “O movimento do puro malte
começou há 10 anos e reconheço a importância do estudo, pois isso nos fez dar
uma guinada na produção para acompanhar o mercado. Mas sem investimento em novos
e modernos equipamentos não atingiria a qualidade que temos hoje”, concluiu
Nirlei.
Marcio Egea Secafin é sócio proprietário da Brotas Beer
Iniciando uma fabricação caseira, em 2010 a
brasagem da Brotas Beer não passava de 50 litros. Dois anos depois teve início
sua produção industrial, passando a produzir três mil litros ao mês e, no ano
seguinte, com a entrada de um novo sócio, a cervejaria da cidade de Brotas/SP
expandiu e hoje sua capacidade é de 55 mil litros/mês.
“Entendemos que o aumento do segmento
cervejeiro, no Brasil, começou a crescer significativamente a partir do momento
que o consumidor passou a ter mais informações e descobriu novos produtos. Há
uma década, o brasileiro só conhecia Pilsen e Weiss. Porém, hoje a oferta de
novos estilos é muito maior e a qualidade faz a diferença entre as marcas que
vem surgindo no mercado”, disse Marcio Egea Secafin, proprietário da Brotas Beer ao explicar o aumento das cervejarias no país.
Fernando Leite da cervejaria Berggren Bier
Gerente comercial da Berggren Bier, da cidade
de Nova Odessa/SP, Fernando Leite, afirmou que a cervejaria iniciou sua
produção na época do grande salto do mercado cervejeiro.
“Estamos completando 13 anos, exatamente quando tivemos o surgimento de muitas cervejarias no Brasil
e essa ascensão aconteceu de forma muito forte devido o nível de conhecimento
que se passou a ter através de mais informações sobre esses produtos. Isso
gerou o interesse maior dos consumidores e provocou um crescimento exponencial
nesses últimos 10 anos”, explicou Leite.
Apesar do grande crescimento registrado nos últimos 10 anos,
o gerente comercial da Brotas Beer, Paulo Bettiol, tem um olhar mais reticente.
“Muitas cervejarias estão surgindo, entretanto o conceito de artesanal está
sendo utilizado indevidamente, pois houve uma invasão de cervejas puro malte
trazidas pelas grandes industrias cervejeiras e isso é saudável para o
consumidor, mas não para a concorrência. Porém, para continuar crescendo é
preciso organizar e regular o mercado com regras e uma legislação específica
que permite com que o crescimento seja justo para todos”, sentenciou Feijão,
como é mais conhecido.
Infelizmente,
por meio de sua assessoria de imprensa, o Mapa informou não possuir dados
específicos sobre as cervejarias artesanais. Mesmo assim, é importante destacar
que o número de cervejarias é uma medida para acompanhar a evolução das
microcervejarias, que representam cerca de 90% desta quantidade de fábricas do
país, segundo o próprio ministério.