terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Corongo

Na penumbra de uma sexta-feira piracicabana qualquer, num final de outono, frequentadores do parque da Rua do Porto, tradicional ponto de encontro de jovens barulhentos que por lá celebram suas igualdades, e situado próximo ao rio que corta a cidade, afirmam ter visto um objeto voador não identificado sobrevoando o lago situado no parque. Durante a fria madrugada, de névoa baixa e com a ausência da lua, o óvni foi avistado numa altura inferior a dois metros da água.

Em meio a uma grande confusão, causada por baderneiros que acompanhavam uma festa de despedida de solteiro, e passavam pelo local, algumas testemunhas narram suas assustadas histórias para incrédulos ouvintes e atrasados policiais.

Nos dias seguintes, a imprensa da cidade não deu importância alguma ao fato, nem se puseram a investigar a ocorrência devido a falta de provas e, principalmente, em decorrência do estado etílico dos transeuntes que por lá circulam ao anoitecer.

Dias depois, moradores próximos e assíduos da prática de pescaria afirmam ter visto uma mancha escura no lago e a água mais agitada do que o normal. Com o surgimento de indícios de que havia alguma coisa diferente dentro do lago, a repercussão do caso começa a tomar corpo, e os frequentadores noturnos começam a enxergar silhuetas estranhas, durante as madrugadas, na beirada do lago.

Os jornais da cidade continuaram ignorando o fato, porém as rádios começaram a fazer brincadeiras sobre a presença de um suposto mostro na lagoa, ou o “mais novo habitante a permear o imaginário das pessoas”, segundo um radialista mais cético.

A frequência da Rua do Porto cai para mais da metade e os bares da região passam a registrar baixas no faturamento. Os pescadores somem do local, alegando não haver mais peixes na lagoa, e o coaxar dos sapos não era mais ouvido por ninguém.

O caso ganha fama nas cidades vizinhas e, durante o dia, curiosos aparecem no local para ouvir histórias dos moradores das redondezas. Um programa de TV dá destaque para o fato, coisa que até então não havia acontecido, e a cidade passa a ser referência em casos de aparições extraterrenas, se tornando atração para estudiosos e ufólogos. Cogita-se a vinda de grupos de pesquisadores na cidade para analisar a veracidade e as circunstâncias do ocorrido.

Coisas inusitadas passam a acontecer no local. Greves e protestos passam a ser realizados nas proximidades da Rua do Porto, na tentativa de chamar a atenção das autoridades. Um grupo de desabrigados, ligado a um movimento popular, monta um acampamento nas imediações da lagoa e a mendicância aumenta no entorno da região. O parque é abandonado pelos usuários e pelo poder público, o mato toma conta do local. Sem conseguir projeção com o caso, o grupo de sem-terra abandona a área.

Pesquisadores do curso de biologia da USP - Universidade do Salto do Piracicaba - lançam a ideia de mergulhar um homem-rã nas águas do lago, com a intenção de desfazer qualquer dúvida sobre a existência de alguma coisa, que não fosse peixe, na lagoa do parque da Rua do Porto.

O escafandrista, que deveria ser bastante corajoso e convicto, iria percorrer toda a extensão do lago de maneira minuciosa, vasculhando de forma científica o fundo daquelas escuras águas. O poder público, que até então não havia se manifestado, se mostrou favorável e deu total apoio à empreitada dos biólogos.

Acreditando na possibilidade de existência de algo vivo, na lagoa, com exceção dos peixes, a Sociedade Protetora dos Animais repudiou qualquer ato que viesse a pôr em risco a vida do pobre animal, já que o escafandrista iria mergulhar armado. Os ufólogos também se postam em defesa do desconhecido, mas apoiando a empreitada, desde que o incógnito fosse pego vivo e trazido à tona para comprovar sua existência de seres extraterrestres.

Devido um entrave burocrático quanto ao seguro, a expedição científica ficou impedida de executar a manobra aquática, pois a seguradora não quis assumir a responsabilidade por qualquer problema ou eventualidade que pudesse acontecer com o mergulhador.

Em busca de evidências, ousados fotógrafos e cinegrafistas desembarcam no parque com suas objetivas e equipamentos de filmagem, na tentativa de flagrar qualquer movimento suspeito nas águas do lago. Destemidos pescadores começam a chegar e também se concentram no local, armando suas redes e molinetes para tentar fisgar a coisa.

O confronto entre caçadores de imagem e de cabeças a prêmio é inevitável. A polícia é acionada no meio da madrugada para resolver o entrevero e, em meio à confusão, pessoas afirmam ter visto algo emergindo da água. O caos é formado e os notívagos começam a surgir de todos os lados. Insones chamando amigos pelos celulares para ver a fera que finalmente apareceu no lago ‘durante uma batida policial’.

O esquadrão da polícia fica pequeno para o número de carros que começa a rodear o parque. Cria-se uma verdadeira algazarra, com buzinas, lanternas piscando e celulares de curiosos ávidos por uma imagem inédita disparando flashses a todo instante. Iluminado pelos faróis dos carros, que circulavam por sua volta sem realmente saber o motivo daquela agitação toda, o parque parecia estádio de futebol em noite de final.

A partir daí, instala-se uma neurose coletiva na cidade. Tudo é culpa do monstro do lago, infidelidade conjugal, briga de casais e vizinhos, alguns com morte, filho de pai estéril, acessos de loucura, desequilíbrios emocionais, bebedeiras, falta de quórum nas reuniões legislativas, espancamentos e estupros.

A queda nas vendas do comércio e o fraco desempenho da indústria também são atribuídos ao bicho. O nível de desemprego aumenta significativamente e única coisa que prospera na cidade é a mística sobre a existência de algo submerso e que não fosse peixe nas águas do lago.

Como estava profundamente imerso, um jornalista batizou o bicho de Corongo. Mesmo tendo um nome e, conseqüentemente, passando a ser alguém, ninguém jamais havia avistado o ex-pagão. A alcunha despertou a criatividade das pessoas e o cotidiano municipal faz surgir novidades em relação ao desconhecido monstro, talvez impulsionado pela monotonia da vida.

Um bar da cidade lança uma bebida chamada Mé-corongo, o sucesso é imediato. Outro aproveita a onda e inventa um lanche homônimo. Sucesso igual. Todos querem experimentar o ‘corongo quente’ e o ‘corongo frio’. Um restaurante cria um escondidinho, mas o recheio é mudado e tornou o prato irreconhecível.

Ambulantes e camelôs passam a vender miniaturas de um monstro aquático, confeccionados por hippies e artesãos, alegando ser aquela a réplica fiel do bicho que habitava as profundezas da lagoa, mas que nunca havia sido visto.

Com o aparecimento deste amuleto, o mito ganha um novo fôlego quando o assunto já parecia estar esfriado. Assim, a réplica de uma imagem nunca vista se transforma numa verdadeira febre. Todo adolescente tem uma no bolso, pendurada no pescoço ou no pulso, as crianças levam os seus para a escola e as professoras os tomam de suas mãos.

Um pastor evangélico abordado o assunto durante o culto satanizando o consumo do maléfico objeto e repudiado, veementemente, sua posse; já o bispo ordena todos os padres a repudiarem a imagem na missa de domingo. A iniciativa saiu como um tiro pela culatra, na segunda-feira a febre já era uma epidemia: todos tinham uma réplica de Corongo.

A miniatura era de resina, sua produção parecia não se esgotar e os negócios prosperaram, logo surgiu Coronga e em seguida os coronguinhos. A materialização do bicho criou uma neurose obsessiva compulsiva entre os munícipes.

Aquele comportamento patológico paralisou a cidade, a situação já não tinha mais controle e se tornara insuportável. A pauta legislativa se debruçava sobre conjecturas absurdas e propostas esdrúxulas para solucionar o problema. As autoridades se dividiram em torno de um novo dilema: jogar veneno no lago ou esgotá-lo, idéias logo descartadas.

Houve uma tentativa para tentar convencer os veículos de comunicação a não noticiarem mais nada sobre o assunto, mas a ideia também não foi bem aceita pelos empresários do setor midiático. Corongo era um produto que se comercializava facilmente, pois os inescrupulosos já havia se apoderado deste filão, que vendia mais do que pão quente.

Um conhecido contraventor da cidade, bastante popular por comercializar a mais antiga mercadoria deste mundo, até tentou patentear o nome do bicho, foi assassinado na porta de sua casa, de frente ao parque, às seis da manhã, quando saía para sua caminhada matinal. O assassino jamais foi encontrado.

Com a chegada do calor a água despencou. Choveu torrentemente naquele verão, com as chuvas provocando enchentes, as enxurradas eram constantes, com seguidos temporais, e as pessoas já não saiam de suas casas. A vida ficou cheirando a bolor e o fim parecia estar próximo, um novo dilúvio avassalaria toda a vida existente.

Na última grande enchente o lago, que era artificial, ainda não existia. Portanto, todos se surpreenderam quando o lago sumiu ao ser incorporado pelo rio. Com a cheia, as águas se prolongaram além do leite e ocuparam toda a extensão do parque. Do alto do prédio da prefeitura, que ficava próximo, a vista era de uma grande área inundada, onde se via apenas o rio alargado. Assim, por algum tempo, a lagoa deixou de existir.

Quando as águas lentamente começaram a baixar o lago ressurgiu, mas desta vez com seu conteúdo renovado e mais cristalino do que nunca. Nitidamente, após a enchente, não havia mais nada de estranho ali.

De repente, o espetáculo criado em torno da mística de Corongo se desfez da mesma forma como se criou: da noite para o dia. Cogitou-se pouco sobre sua possível migração fluvial, ou porque não dizer pluvial, pois se foi com a chuva e os dias se tornaram monótonos sem as notícias que o faziam vivo, fato suficiente para enterrar uma existência.

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