Durante um baile de
carnaval, já na madrugada de Cinzas, Arlequim e Colombina conversam no salão de
um clube social da cidade. Ele:
_ Se não tomar um comprimido, amanhã
vou acordar com um cavalo dando coices num sino dentro da minha cabeça.
_ Avisei
para não misturar tanta coisa. Parecia que estava fazendo um coquetel no
estômago. Fique aqui, volto já.
Após
o afastamento da Colombina, Arlequim se aproxima de uma Odalisca que estava perto.
_ Sozinha
num baile tão animado?
_ Estes carnavais não me animam, não
são mais os mesmos. Estas músicas.......
_ Ora, a animação está dentro de
cada um. As pessoas estão aqui apenas para se divertirem e nada mais. Deveria
fazer o mesmo.
_ Mas o carnaval mudou. Antropofagia
geral. Continua sendo o festival da carne, só que restou apenas a carne humana
nesta festa!
_ Mas o que veio fazer aqui? Carnaval
é isso, ninguém é de ninguém.
_ Não vim para ser comida de
ninguém! Gosto das marchinhas, das máscaras, das fantasias. Nem perfume estou
sentindo, está cheirando éter puro!
_ Está no lugar errado, ou ainda não
bebeu o suficiente para entrar no clima que diz estar faltando.
_ Quem disse que a animação estava
dentro de cada pessoa? Não preciso de bebida ou drogas para me divertir no
carnaval. Veja você, está encharcado de álcool e com um tremendo bafo. Digo que
o carnaval mudou porque não há ninguém neste salão fantasiado, estão todos
seminus.
_ Você é muito conservadora com
relação à festa. Às coisas mudam, mesmo assim existem pessoas fantasiadas. Eu e
minha esposa, por exemplo?
_ Eu e meu marido também, mas apenas
os mais velhos mantêm essas tradições, que estão acabando. A maioria está aqui
caçando, é só olhar e conferir. E olhe estas músicas...? Que coisa mais
apelativa.... É como se todos estivessem se aquecendo para um ritual
voluptuoso.
_ É um aquecimento e faz parte do
clima. Este é o melhor lugar para as pessoas desabrocharem suas vergonhas. O
tão reprimido desejo por fortes emoções pode ser aqui saciado pelos anjos e
demônios que há em cada um de nós. É como se estivéssemos no purgatório, aqui
podemos dançar com o diabo sem que ele, necessariamente, nos leve para sua casa
no final do baile.
_ Só porque estamos no carnaval
todos devem abster de suas condutas para viver essas emoções?
_ Uma vez ao ano temos a chance de
despirmos de nossas condutas, penitenciados por nossa própria consciência,
pois, afinal, é carnaval. E com a vantagem de voltarmos ilesos para casa.
_ E você acha que uma pessoa pode ir
ao fundo da perversão e simplesmente voltar para sua vida, normalmente, sem
mácula alguma?
_ Até acho que pode haver alguns
remorsos ou arrependimentos, movidos por atitudes insanas, mas ninguém vem para
cá obrigado. É a festa mais democrática do mundo, se não quiser se divertir vá
para um retiro, se isole e não verá o que não quer.
_ Pois eu não vejo democracia nisto,
as pessoas são iludidas por um clima festivo e acabam encontrando apenas a perversidade.
_ Não diga isso, deixe o dia raiar
que tudo volta ao normal!
_ As coisas não devem ser vistas
como se ontem não tivesse existido.
_ Hei, espere um pouco, com todos
estes juízos e predicados, o que está fazendo aqui? Você também me disse que
era casada. Onde está seu marido?
_ Ele passou a pouco, num trenzinho.
_ Mas, naquele trenzinho as moças
estavam apenas de biquíni. Só havia um Pierrô vestido.
_ Sim, o meu marido.
_ Mas..., ele estava na maior farra!
_ Estamos num baile de carnaval, ou
não?
_ Espera aí, mas quem me falava dos
excessos dos carnavais modernos?
_ Estamos aqui para salvar almas
perdidas, ou que estejam seguindo o mau caminho.
_ Do que está falando? Que negócio é
esse?
_ Eu e meu marido fazemos parte de
uma seita. Temos um templo para salvarmos fiéis em desespero.
_ Mas o que estão fazendo aqui, num
baile de carnaval?
_ Estamos arregimentando ovelhas
para nosso rebanho.
_ Aqui?!
_ Onde mais poderia ser? Conhece um
lugar mais profano do que um baile de carnaval? Até o final do baile,
principalmente por esta ser a última noite, muitos sucumbirão em suas próprias
dores quando sentirem a solidão se aproximar.
_ Como pode ter tanta certeza do que
diz?
_ A solidão deprime todo ser humano
e o álcool baixa a guarda das pessoas. Há muitas almas precisando de ajuda
nesta vida e estamos aqui para mostrar um novo caminho para quem estiver
disposto a conhecer. Quando você não sabe para onde está indo qualquer caminho
serve. É para isto que viemos para cá.
_ Gostaria de conhecer esta sua
igreja, se é que posso chamá-la desta maneira?
_ Sim, mas ainda é muito pequena. As
reuniões acontecem num galpão abandonado, fizemos algumas melhorias e
realizamos os cultos às terças.
_ De quem partiu esta iniciativa de
se criar uma igreja para almas em desespero?
_ Não existem almas sossegadas. A
tranqüilidade é sempre passageira e efêmera, as pessoas necessitam de curas rápidas
para suas dores. Isto explica porque há tantas igrejas e muitos infelizes. Em
nossa seita buscamos a paz para sua alma num curto prazo.
_ Mas, quando a solução é muito
rápida ela também não é menos eficaz?
_ É por isso que as pessoas voltam, pois
as dores nunca são as mesmas. Cada dia há um problema diferente e nunca
repetimos o mesmo diagnóstico.
_ Gostei do método, devo aparecer por
lá qualquer hora e levarei minha esposa. Por falar nisso, ela está demorando
muito?
_ Meu marido também sumiu.
_ Onde mesmo disse que ficava o
templo de vocês?
_ Conhece a rua Caminho da
Servidão?....
Enquanto isso..., na
parte externa do salão, sobre a grama do jardim, Pierrô e Colombina se amavam
sob a garoa fina, daquela fresca madrugada de verão. Embalados pela banda que
naquela altura da noite já tocava Bandeira Branca.
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